domingo, 11 de maio de 2014

A Jornada de Esperança - Parte VII

Visitas Inesperadas

          Sinuhe acordou uma hora e meia antes do combinado com Viatilis. Vestiu-se e resolveu passear a esmo por Aldhafera. Zanzando pelos corredores chegou até um elevador e entrou. O elevador não tinha um botão para cada andar. Seus controles estavam numa tela sensível ao toque. Aquele estaleiro espacial era quatro vezes maior que o de Autalun. Uma rápida checagem no menu e Sinuhe percebeu que nem todos os anéis de atracação estavam disponíveis ali. Ele sabia que as docas estavam agrupadas em grupos de quatro anéis separadas por anéis residencias ou industriais. Provavelmente os anéis que não estavam disponíveis ali deveriam estar fora de uso. Seria um bom lugar para caminhar sem ser perturbado por ninguém.

          Ele escolheu um anel de docas no menu que estava só. O Anel Cinza. O elevador foi rápido. Assim que a porta abriu ele foi direto para as escadas. Abriu a porta de acesso e viu o número 27 estampado no verso da mesma. No menu do elevador aquele era o 15º anel disponível. Fechou a porta atrás de si e subiu as escadas para o nível 28. Saiu das escadas, adentrou o hall de acesso e foi até a primeira porta que encontrou. Ao abrir a porta deparou-se com uma grande sala de controles, com largas e altas janelas de vidro, e além delas estava toda uma doca espacial iluminada, mas vazia. Ele achou aquilo um desperdício de energia. Por que manter uma doca vazia iluminada? Fechou os olhos e vasculhou a doca com a mente e sentiu algo estranho. A doca estava vazia, mas a sensação dada por aquele vazio era de alguma forma desconfortável.

 - Será que existe algo aqui se ocultando, por isso a doca está iluminada? – pensou Sinuhe.

Do outro lado dos vidros estava a 22ª cópia de Plumbia, habitando a maior de todas as naves bombas construídas por Aldhafera. Ela estava pronta para partir em direção à estrela Nob quando o Marechal pisou o primeiro degrau da escada. Plumbia concentrou-se ao máximo, erguendo seus escudos para esconder-se da mente do Marechal. Evitou a todo custo lançar qualquer feixe mental de percepção sobre ele, pois isso denunciaria a presença dela. Ela apenas sentia passivamente a presença dele. Podia perceber a mente do Marechal perscrutando toda a doca em busca do que estava ali. Essa agonia durou quase vinte minutos até que a projeção mental de Viatilis se fez presente junto ao Marechal.  Plumbia manteve sua percepção passiva até que os dois saíram da doca. Fora por pouco.

Ela ainda teve que esperar mais cinco minutos. Só depois que perdeu totalmente qualquer vestígio da presença do Marechal que ela retomou seu trabalho. Com o poder de sua mente, desligou as luzes da doca, retirou todo o ar do ambiente e abriu o portão espacial. A nave bomba saiu para o espaço, oculta no campo psiônico da piloto. A doca fechou-se automaticamente atrás dela como programada.  Assim que se afastou de Aldhafera ele desapareceu totalmente de sua percepção. Ela agora só podia ver a lua vermelha e o planeta Bogotol mais atrás. A lua verde estava mais distante ainda, para a esquerda. O mais belo mundo a Resistência era mesmo lindo de se ver do espaço. Plumbia tomou a rota comercial para Autalun em dobra dois. Após duas horas de viagem, Viatilis entrou em contato.

- Com estás, Plumbia.

- Estou bem, Comandante. Mas foi um belo de um susto. A intuição de nosso Marechal é terrível.

- Sim, ele foi diretamente até você. A mais poderosa dos pilotos a bordo da maior nave bomba. Conheço aquele homem já faz séculos, mesmo assim ele ainda consegue me surpreender. Você conseguiu retomar o tempo de nossa programação?

 - Consegui. Tinha apenas 25 minutos de atraso. Vou chegar em Autalun na hora programada, Comandante.

 - Muito bom. Você tem que estar no sistema Nob em exatas doze horas. O asteróide que vai camuflar seu mergulho na Mãe de Todas as Estrelas já está na rota de colisão. Muito cuidado ao contornar o Quasar. Não conseguimos controlar totalmente a poeira de nanomáquinas naquela região, então mantenha-se na rota ou poderá ser detectada. Estamos monitorando a área. Caso ocorra alguma movimentação de nanos, te avisaremos.

- Ok, Comandante. Boa sorte com seu visitante xereta.

- Ele está agora feito criança com brinquedo novo, inspecionando os novos lasers e ogivas de antimatéria. Acho que não vou ter mais trabalho por enquanto. Boa viagem, Plumbia. Peço que Nob a proteja, apesar de nossas intenções.

- Exterminar nossa Deusa Mãe para salvar nossas vidas. Acho que vou ter que contar apenas com a sorte, Comandante. Mesmo assim obrigado. Adeus.

Plumbia seguiu em dobra dois até Autalun. Passou ao largo da doca espacial do planeta e mergulhou em dobra oito em direção ao centro de Nobiloria. Contornou o Quasar pela rota estabelecida chegando na periferia do sistema Nob onze horas após sua partida. Voltou ao espaço normal bem atrás do asteróide que lhe serviria de camuflagem para o mergulho na estrela. O asteróide era dez vezes maior que sua nave, quase com seis quilômetro de diâmetro. Uma caverna fora escavada nele para acolher a nave. Ela atracou na caverna e desligou a maioria dos sistemas, mantendo apenas sua camuflagem e sensores. A rocha levou oito dias para atravessar todo o sistema Nob. No caminho Plumbia pôde ver o mundo natal da GOE - Aguidel. Ele não tinha mais atmosfera e nem sequer um vestígio de vida. Tornara-se uma esfera perfeita de metal. Parecia mais uma estação espacial gigantesca. Ali estava o coração da GOE. Rezam as lendas da galáxia que aquele era o mundo com a maior superfície oceânica de Nobiloria. Aguidel não possuía continentes, sendo qualhado por milhares de ilhas tropicais e suas calotas polares nunca coexistiam. Conforme as estações passavam, uma se formava enquanto a outra desaparecia. Dezenas de drones da GOE pontilhavam o espaço em torno dele.

Finalmente a hora chegou. O asteróide mergulhou na estrela gigante e se desfez antes mesmo de chegar à superfície. Plumbia e sua nave eram agora apenas um ponto mergulhado num mar de fogo atômico azul, mantido a três metros de distância da fuselagem pelos escudos psiônicos.

- Serão dias solitários navegando neste mar de fogo até o mais próximo possível do centro da estrela – pensou Plumbia.

Mas ela não teve tempo de relaxar. Assim que estabilizou a nave nas correntes incandescentes do interior de Nob, ela sentiu uma presença. Uma consciência serena que atravessou com facilidade seus escudos, sem derrubá-los e materializou-se na câmara central da nave. Uma linda mulher humana de cabelos longos azuis surgiu na frente de Plumbia. Ela tinha um par de asas emplumadas também azuis, mas em vários tons. Vestia um tomara-que-caia dourado com uma faixa azul na cintura amarrada nas costas. As pontas da faixa desafiavam a gravidade e partindo da cintura da mulher formavam um arco cada uma, encontrando-se dois palmos acima de sua cabeça. No meio da testa ela tinha um arco de metal dourado que adentrava dos dois lados sobre seus cabelos. Seus olhos eram verdes como esmeraldas com um olhar profundo e sereno. Seus pés estavam descalços.

Plumbia ficou maravilhada com aquela aparição e levou quase um minuto para voltar a si. Quando ela pensou em reagir de alguma forma ouviu uma firme e doce voz feminina.

 - Acalme-se, Plumbia. Sei exatamente quem você é e o que veio fazer aqui, e não tenho a menor intenção de impedi-la. Vou apenas desfrutar de sua companhia até nosso derradeiro fim, minha filha.

- Quem é você?

- Eu sou Nob. A Mãe de todas as estrelas de Nobiloria.


sexta-feira, 18 de abril de 2014

A Jornada de Esperança - Parte VI

O Retorno ao Aldhafera



          Vinte e três de Cuaddoze de 2003D´GOE. Um Utilcuatro. Quarenta dias se passaram desde a partida de Esperança. Sinuhe inspecionava lentamente os reparos da frota. A batalha terminara no dia anterior garantindo que Autalum continuaria orgânico por mais algum tempo. Absorto em seus pensamentos o marechal teve um leve sobressalto quando ouviu alguém chamar seu nome. Mas não era um voz audível. Era um pensamento. Viatilis era quem chamava. 

          Sinuhe entrou em contato com a torre de controle do estaleiro de Autalum pedindo que preparassem seu cruzador particular para um passeio. Foi informado que o Cheleb ficaria a disposição no setor verde da doca superior sete, em 20 minutos.

          - Não se apressem tanto. Levarei mais tempo para chegar até lá. Estou na doca inferior dois.

          O estaleiro de Autalum tem 15 anéis de atracação, cada um com oito docas. Cada anel tinha um pé direito de 200 metros. Um imenso cilindro com mais de três quilômetros de comprimento orbitando o planeta. Quase toda a frota podia atracar ali. Mesmo Miaplacidus, que era a maior nave da frota, não conseguia ocupar totalmente uma doca. Foram 15 minutos de caminhada até o elevador expresso. O mesmo levou 7 minutos para percorrer todo o estaleiro. Sinuhe ainda caminhou mais dez minutos até o setor verde da doca superior sete. Tempo suficiente para organizar em sua mente todos os assuntos que queria tratar com o Comandante de Aldhafera.

          - Quarenta dias, Viatilis. O que você andou aprontando em Aldhafera? Por que meu clone optou pela morte?

          Em breve Sinuhe teria suas respostas. Cheleb já estava pronto, como prometido. Dele era possível ver as linhas graciosas da Capitânia Miaplacidus. Sinuhe concentrou-se chamando por Viatilis – Onde você está, velho amigo?

          - Atrás da lua vermelha de Bogotol.

      Sinuhe espantou-se com a resposta. Fazia muito tempo que Aldhafera não se aproximava tanto dos cinco últimos mundos orgânicos. Se ele estava tão próximo de um deles, era sinal de que algo grande estava por vir. Bogotol fica no meio entre os demais mundos da resistência. Um ponto estratégico para comunicação e logística. Também era tido como o mais belo dos últimos mundos, com duas luas. Uma vermelha e outra verde. Certamente Aldhafera tinha novas armas para distribuir. Cheleb partiu invisível para Bogotol em dobra dois por uma das rotas comerciais. Viajar mais rápido e por outra rota só atrairia a atenção da GOE. Cinco horas depois Cheleb voltava ao espaço normal nas orbitas mais externas do sistema de Bogotol. Uma projeção de Viatilis surgiu na frente do Marechal.

          - Como está, Sinuhe?

          - Nunca me senti tão bem. A fusão de almas foi uma experiência única, Viatilis. E você, Comandante? Como estás?

          - Mais ocupado do que nunca. Tenho muitas novidades para nosso Caro Marechal. Vamos mudar os rumos desta guerra.

          - Imagino que sejam rumos perigosos já que despachou para a Via Láctea uma nave com uma amostra de tudo que temos.

          - Exatamente, meu caro. A GOE não perdeu sequer um asteróide de seus territórios para nós nos últimos dois mil anos. Não sei como ela vai reagir ao reconquistarmos um mundo pela primeira vez. Achei por bem tomar essa precaução. Nós, os psíquicos, nunca encontramos uma prova mínima de vida inteligente na Via Láctea. Se formos extintos aqui, continuaremos por lá. Desligue os motores de Cheleb. Vamos teletransportá-lo para Aldhafera.

          Sinuhe desligou os motores. Assim que Cheleb parou foram teletransportados. Ele se viu novamente no apartamento reservado ao Marechal. Viatilis estava ao seu lado falando.

          - Sugiro que nosso caro Marechal tome um banho e descanse um pouco. Nossa conversa vai ser longa, Sinuhe.

          - Vou aceitar a sugestão, pois passei as últimas vinte horas visitando docas em Autalum. Mas antes quero saber do meu duplo, Viatilis. O que aconteceu com ele?

          - Ele optou por partir com Esperança, mas não em animação suspensa. Preferiu a morte temporária no banco de dados. Até entendo, pois a viagem irá durar mais de quatrocentos anos.  O que ele tinha que fazer como cientista, estava feito e o mundo lá fora já tinha um Marechal. Também temo que o soldado dentro dele falou mais alto. Desde o início ele não gostou muito da idéia de uma nave de fuga. Mesmo assim capitaneou Esperança desde Aldhafera até o ponto de encontro com o feixe do quasar de Nobiloria, em segurança. Ele/você sabe como passar desapercebido por entre essas estrelas da GOE.

          - Aprendi a duras penas e levou mais de uma vida, Viatilis. Como vai essa jornada?

          - Muito bem. Esperança segue a quase noventa e oito por cento da velocidade da luz em direção à Via Láctea, o feixe a esconde totalmente. Nem sinal de que a GOE tenha percebido algo.

          - Então aproveitarei a sua hospitalidade. Vejo que já preparou uma muda de roupas para a minha pessoa. Qual a ocasião?

          - Sim. Alguns de meus cientistas humanóides te esperam para o jantar às vinte e uma horas, Marechal. São apenas dezessete e trinta agora. Terás um tempo para repousar. Você vai surpreender-se com o que ouvirá deles. Mas não vou adiantar o assunto. Até mais ver, meu amigo. Virei ao seu encontro amanhã, às seis horas.

          Ao ver-se só, Sinuhe tirou os sapatos e deitou-se. Dormiu por quase três horas. Às vinte e uma em ponto adentrava um dos refeitórios de Aldhafera. Jantou com quatro cientistas que lhe explicaram todo o processo de duplicação e dominação da poeira de nanomáquinas da GOE, e de como ela será utilizada para alterar a programação dos drones de guerra da inimiga. Quase metade das estrelas de Nobiloria já estava com nanos alterados. Como a conversão se dava em projeção geométrica, todas as nanomáquinas da galáxia estarão dominadas em mais uma semana. Agora caberia ao marechal preparar a ofensiva.

          - Mas abstenha-se, meu caro Marechal, de fazer planos de batalha nesta noite. Nosso caro Comandante Viatilis tem outra surpresa para o senhor – informou um dos cientistas, na despedida.

          Sinuhe retornou ao apartamento pouco depois das vinte e três horas. Ainda estava maravilhado com a possibilidade de ter as naves drones da GOE lutando em favor dos orgânicos. Realmente eram grandes as chances de recuperar alguns mundos. Mas com certeza a GOE não assistirá pacificamente a isso. Sua contra-ofensiva será terrível. Ele irá precisar de mais alguns trunfos na manga. Trunfos que com certeza Viatilis estava preparando.


          O Marechal encontrou um pijama de seda esperando-o sobre a cama já arrumada. Pela primeira vez em séculos, dormiu com uma sensação de esperança.   



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quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

A Jornada de Esperança - Parte V

Planos Dentro de Planos



          O Comandante Viatilis observava atentamente as telas mentais de Aldhafera. A maioria mostrava o final da batalha nos arredores de Altalun, enquanto três delas mostravam o Quasar de Nobiloria, a Nave Esperança e a visão que o Capitão Mersonii tinha da cópia do Marechal Sinuhe. A imagem do duplo do Marechal dissolvendo-se no ar chamou a atenção dele.  Focou sua mente na alma sobrevivente e acompanhou a jornada dela até a Nave Capitânia Miaplacidus. Chegara a hora da verdade. De saber o quanto da memória do duplo seria absolvida pelo Sinuhe original. Viu o momento em que o Marechal solicitou uma imagem do Quasar. Com a ajuda de Clymene foi capaz de determinar o quanto de informação a fusão das almas proporcionou. Ao receber os resultados soltou um pensamento de alívio:

- Foi pouco, muito pouco, meu amigo, o que receberas de seu duplo. Posso continuar trabalhando em Aldhafera sem preocupações adicionais. Não é apenas uma fuga o que tenho planejado. Em breve lhe tirarei essa tristeza, Sinuhe.

Viatilis colocou todas as telas de Aldhafera observando o vôo de Esperança. Quando viu que a nave atravessou com segurança a borda de Nobiloria, contatou a mesma:

- Parabéns pela manobra, Capitão Mersonii. Como estão todos?

- Estamos todos bem, Comandante Viatilis. O esforço para proteger a nave das radiações quânticas foi menor que o esperado. Com apenas metade da tripulação é possível manter tudo funcionando.

- Mais ótimas notícias, meu caro. Então seguiremos como planejado. Vou começar a replicação de sua tripulação amanhã. Será um a cada noventa e seis horas. As linhas de montagem das naves-bombas e mísseis de antimatéria já estão em construção. Creio que estaremos em produção dentro de quinze dias.

- Vamos mesmo fazer isso, Viatilis? Vamos destruir cada estrela de Nobiloria em que a GOE habita? Teremos milhares de cópias desta tripulação executando missões suicidas?

- Tudo vai depender da forma como a GOE irá reagir ao perceber que somos capazes de roubar-lhes o comando de sua poeira de nanomáquinas e por meio delas controlar seus drones de batalha.

- Vírus de computadores. Abandonamos há tanto tempo o uso de programas baseados em memória volátil, utilizando apenas memórias físicas não regraváveis, justamente para evitar a invasão da GOE em nossos sistemas e jamais pensamos que este também poderia ser um ponto fraco dela. Como ela irá reagir a isso?

- Acredito que a resposta será violenta, e por isso quero estar com toda a frota e os cinco mundos restantes bem armados com mísseis de antimatéria. Caso essa última linha de defesa falhe, aí sim, destruiremos todas as estrelas que a GOE habita. O pulso eletromagnético gerado pelo colapso de uma estrela por antimatéria é a arma definitiva contra essas máquinas. Não há escudo eletrônico que resista a esses pulsos. Apenas os escudos psíquicos são capazes.

- O quanto da poeira de nanos já temos sobre nosso domínio?

- Cada mundo orgânico já está dentro de uma esfera de sete anos luz com nuvens de nano máquinas dominadas. As principais rotas de comércio entre os mundos também estão dominadas. A taxa de crescimento é de dez por cento por semana. Estamos mantendo a nossa reprogramação inativa. A GOE só vai perceber essa “traição” depois que os sistemas de mísseis de antimatéria estiverem totalmente operacionais.

- E quando o Comandante vai colocar nosso Marechal a par desta parte dos planos?

- Somente quando os sistemas de mísseis estiverem prontos para serem instalados.

- Agora que a alma dele está unificada, sua capacidade psíquica aumentou muito. Nós percebemos a mente dele tentando vasculhar o feixe de quasar onde estamos. Acha mesmo que irá conseguir manter em segredo as naves-bombas de antimatéria com seus pilotos suicidas?

- Você e sua tripulação, Mersonii, são as mentes mais poderosas que já criei. Quando uma nave entrar na linha de produção já vai ter um piloto encobrindo a existência dela. Uma réplica de um de vocês. Os escudos psiônicos que vocês produzem são os mais perfeitos. Nada vai descobrir o que vocês esconderem, muito menos Sinuhe.

- A GOE hoje domina quinze mil estrelas, inclusive a Sagrada Nob. O que vai acontecer conosco, os originais, quando essas milhares de réplicas perecerem? Todas essas cópias de almas virão até nós, Comandante?

- Sim. Elas irão se fundir em vocês. Foi por isso que lhes dei uma educação tão rígida. Foi por isso que incuti na moral de cada um de vocês, tantos valores. Foi por isso que lhes ensinei tanta ética. Se chegarmos ao extremo de destruir as quinze mil estrelas da GOE, você e sua equipe acumularão tanto poder pela fusão das almas de suas réplicas, que serão os novos deuses da Via Láctea. Essa era a verdadeira razão pela qual os antigos proibiram a replicação de seres pensantes ainda vivos. Quando dividimos uma alma obtemos duas idênticas, mas quando elas se fundem, a resultante é sempre maior que a original. Serão vocês que formarão a última linha de defesa dos orgânicos.

- Espero que sejamos merecedores de tanto poder, Viatilis.

- Utilizem o poder apenas para proteger e servir, Mersonii, e tudo dará certo. Não vou perturbá-los mais, meus filhos. Sei que todos estavam escutando essa conversa. Vocês já estão quase atingindo a distância máxima de capacidade de comunicação de Aldhafera. Não poderei mais contatá-los. Qualquer comunicação no futuro vai depender de você, Plumbia. Que Nob os guiem nessa jornada.

- Prometo manter o contato, Comandante, pelo menos uma vez ao mês. Queremos saber como as coisas irão evoluir aí. Obrigado e que Nob oriente seus atos.


Viatilis ficou feliz com a resposta de Plumbia e sentiu a imagem mental de cada um dos tripulantes de Esperança batendo continência. Ele retribuiu o gesto e encerrou a comunicação. As telas de Aldhafera agora mostravam apenas as imagens rotineiras do sistema de vigilância.


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domingo, 19 de janeiro de 2014

A Jornada de Esperança - Parte IV

A Partida


          Mersonii observou atentamente a desmaterialização do duplo de Sinuhe. Sentia num canto de sua mente, que se considerava um assassino. Foi o próprio Sinuhe quem quis finalizar aquela vida duplicada – um suicídio assistido, disse Viatilis. Mas não era assim que se sentia. Dera cabo daquela vida, apesar dos milhares de bits que foram para o banco de dados. Mas não tinha como pensar nisso agora. Esperança tinha que partir. Faltavam menos de sessenta minutos para o disparo do quasar. Desmanchou sua projeção mental e mergulhou toda a sua atenção na sala virtual de comando que o coletivo de sua equipe de pilotos psíquica criava, dando suas primeiras ordens:

          - Steno, nossa situação?

          - Como previsto, Capitão, a poeira de nanomáquinas da GOE retirou-se da rota da rajada do quasar. Temos caminho livre para navegar em sub-luz sem sermos detectados até a borda da galáxia.

          - Stenella?

          - Escudos ao máximo, Senhor.

          - Visidii?

          - Rota traçada de acordo com as informações do Tático, Capitão.

          - Plumbea?

          - Caminho livre, Capitão. Nenhuma atividade GOE nas proximidades. A nave inimiga mais próxima está a quatro meses luz de distância, seguindo em direção oposta.

          - Hectori?

          - Toda comunicação GOE na área sob vigilância, Senhor. Nenhum bit a nosso respeito.

          - Tempo, Trópia?

          - Quarenta minutos para o disparo. Devemos partir agora, Capitão.

          - Teuszii?

          - Motores de impulso prontos no aguardo, Capitão.

          - Acionar, Teuszii. Começando com meia-luz, acelerando até atingir noventa e sete por cento no momento do impacto da rajada.

          - Sim, Capitão.

          - Mantenha a rota, Visiddi, os demais fiquem atentos.

          Esperança acionou seus poderosos motores psiônicos. A velocidade meia-luz foi atingida em dez minutos.

          Enquanto esperavam pelo impacto da rajada do quasar, Mersonii voltou a pensar em Sinuhe. As divergências entre o duplo do Marechal e Viatilis chegaram a um ponto sem volta. Como militar, Sinuhe jamais concordara com essa fuga. Deveriam lutar até o fim e aceitar a derrota, se assim o fosse. Mas Viatilis insistiu nessa jornada e Sinuhe optou por não fazê-la, transformando-se em dados. Mas o que Sinuhe talvez não soubesse, eram os motivos de Viatilis para criar esse plano de fuga. Para destruir GOE, Viatilis estava disposto a destruir também quase toda a Galáxia Anã de Nobiloria. E Mersonii com seus companheiros iriam ser os executores desta ação. Ele já se sentia culpado por matar um homem, mas num futuro breve todos eles iriam executar até mesmo a Mãe de Todas as Estrelas, a deusa Nob. O estresse gerado para esconder essa informação de Sinuhe fora terrível. Apesar de humano, Sinuhe tinha uma mente poderosa, e esses anos de convívio com diversos psíquicos a capacitaram ainda mais. Mersonii não tinha condições de determinar se Sinuhe havia descoberto algo ou não. Talvez, o que levara Sinuhe ao suicídio fora o fato de acreditar que o seu eu original receberia todas as informações de sua alma. A voz de Trópia tirou Mersonii de seus pensamentos.

          - Sete segundos para disparo do quasar, cinco, quatro, três, dois, um, Plumbia?

          - Disparo confirmado e na rota prevista. Vai nos atingir em 5 minutos, Vice-Capitã.

          - Informe, Visiddi.

          - Estamos na rota e velocidade corretas, Capitão.

          - Steno, e os nanos?

          - Caminho livre, Capitão. Eles estão mantendo posição apenas na borda da galáxia. Temos que estar mergulhados na rajada antes de atingi-los, ou seremos detectados. Temos dez minutos para essa manobra após o impacto.

          - Stenella, acionar rotação dos escudos. Preparar para impacto.

          - Escudos em rotação com aletas abertas, Senhor.

          - Nensis, situação.

          - Todos estamos perfeitamente bem, Capitão. Sistemas de suporte de vida em pleno funcionamento.

          - Trópia?

          - Um minuto para a rajada e contando.

          Sob a contagem da Vice-capitã, a rajada atingiu Esperança. Sua imersão no interior do feixe abriu um buraco na extremidade. A potência dos motores foi sendo reduzida até atingir um ponto de equilíbrio. Os escudos em rotação sugavam massas de energia da traseira da nave, lançando-as a frente e selando a extremidade do feixe. Esperança viajava agora tranqüilamente dentro da rajada do quasar, totalmente oculta, quase à velocidade da luz. Ela passou pelas nanomáquinas na borda de Nobiloria sem ser detectada.

          Plumbia projetou sua consciência fora da nave, observando toda a manobra. Ela não detectou a menor divergência entre a rajada em que eles mergulharam, das demais observadas anteriormente. Hectori também não encontrou nada nas comunicações da GOE que denunciasse a presença de Esperança. Plumbia podia agora observar todo o esplendor do gigantesco disco da Via Láctea e compartilhou essa imagem com os demais. Estavam a caminho de um novo lar.


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quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

A Jornada de Esperança – Parte III

Lembranças Do Que Vivi e Do Que Não Vivi

          A porta da cabine fechou automaticamente atrás de Sinuhe. Ele sabia exatamente o que acabara de lhe acontecer. Seu duplo, criado há 40 anos, deixou de existir em Nobiloria e a metade de sua alma retornara. Sentou-se no divã e pôs-se a lembrar de sua conversa com Viatilis, Conversa que o levara a quebrar um tabu de seu povo.

“Não se deve reconstituir um mesmo ser duas vezes ao mesmo tempo.”

       Viatilis era o mais velho dos golfinhos psíquicos a serviço da resistência. Um ser poderoso que sozinho mantinha em segurança um dos principais estaleiros espaciais da Resistência Orgânica. Sob a força mental de Viatilis era como se o Estaleiro Aldhafera jamais tivesse sido construído. Toda pessoa que deixava o local, esquecia-se dele automaticamente. Nada em Nobiloria era capaz de detectá-lo. Sequer os governos da resistência tinham registros de sua construção. Tudo fora “deletado” por Viatilis. O único que sabia da existência do estaleiro era o Marechal Sinuhe, apenas porque Viatilis assim o permitia. Aldhafera era o responsável pelas inovações da resistência em tecnologia de guerra. Dali saiam os mais variados protótipos de armas e naves. Em seus bancos de dados estavam as memórias e corpos dos maiores cientistas de Nobiloria. Ali nasciam as últimas gerações de poderosos seres psíquicos, humanóides ou não.

       Era o dia 15 de Treddoze de 1963D’GOE, um Noborar. A batalha da semana terminara no dia Utiltres, dando mais tempo ao Marechal para revisar a frota. Estando todas as naves em ordem para a semana seguinte, ele resolveu fazer uma inspeção surpresa em Aldhafera, em pleno dia de oração a Deusa Nob. Não sabia dizer quantas pessoas ainda guardavam os santos dias do final de semana, já que eram os únicos em que as forças de GOE não batalhavam. Era o tempo que os orgânicos tinham para se reorganizarem.

          Sinuhe saiu da Nave Capitânia Menkalinan sozinho, pilotando Cheleb, o pequeno cruzador particular do Marechal. Um motor armado até os dentes que já o retirara de sérias enrascadas. Ele já havia sobrevivido à destruição de duas naves capitânias e no futuro também veria o fim de Menkalinan.

          Antes de traçar uma rota, chamou Viatilis mentalmente. A resposta foi rápida. Aldhafera estava orbitando o Quasar de Nobiloria. Uma viagem de duas horas em dobra 8. Quando Cheleb voltou ao espaço normal em torno do quasar, uma projeção mental de Viatilis se fez presente na ponte de comando.

          - Quanto tempo Sinuhe? Que bons ventos o trazem, meu amigo, ao esquecido Aldhafera?

          - Eu jamais esqueço dele e muito menos de você, caro amigo. Estou com tempo e resolvi fazer-te uma visita. Quero relembrar bons momentos e ver quais novidades vocês estão produzindo.

          - Então, por favor, Senhor Marechal, desligue seus motores. Vou teleportar você e Cheleb ao estaleiro. Não vou ariscar uma detecção abrindo um hangar. GOE tem ouvidos e olhos demais esparramados por aqui. Tudo o que eles viram foi uma rocha saindo da dobra espacial.

          - Ok, Senhor Comandante Viatilis. Precauções nunca são demais.

          Sinuhe desligou os motores. Quando voltou a si estava de pé na sala do apartamento reservado ao Marechal da frota em Aldhafera. Uma projeção mental de Viatilis estava ao seu lado.

          - Seja bem-vindo Marechal. Espero que a decoração esteja ao seu gosto e que estas paredes lhe proporcionem um pouco de repouso. Vai passar esta noite conosco, não?

          - Não tinha essa intenção, mas sempre me esqueço do quanto este apartamento é convidativo. Posso deixar para partir amanhã cedo.

          - Ótimo. Quero lhe mostrar alguns projetos. Inclusive todos os detalhes de Miaplacidus, sua futura capitânia.

          -Uma nova capitânia?  Mas Menkalinan ainda está em ótimo estado e as forças de GOE ainda não conseguiram superá-la.

          - Realmente ela está durando mais que as suas predecessoras. Mas eu não sei o que seria melhor. Se isso está ocorrendo porque o Marechal está mais cuidadoso ou se é porque o inimigo está mais relaxado.

          - Não vou discutir de quem são os méritos pela longa vida de Menkalinan.

          Ambos riram e continuaram falando de amenidades. Depois de um delicioso café da manhã, Sinuhe visitou diversas instalações de Aldhafera, viu as projeções em 3D de novos armamentos e da futura Miaplacidus e por fim a maternidade dos psíquicos. Almoçou com alguns dos cientistas e discursou aos militares residentes. Dispensou o jantar, tomando apenas um copo de suco de maracujá. A única espécie sobrevivente do planeta natal da GOE.

          De volta ao apartamento, livrou-se da farda, tomou um banho e vestiu o confortável pijama de seda que estava sobre a cama a sua espera. Sentou na poltrona defronte a cama onde fez suas orações diárias para Nob, unindo as pontas dos dedos das mãos e encostando os dedões no queixo e os indicadores na testa. Ao terminar chamou mentalmente por Viatilis, que se fez presente.

          - Já está pronto para dormir, meu amigo? Ainda é cedo.

          - Infelizmente não sou como você, meu caro, que pode deixar um lado do cérebro dormindo enquanto o outro trabalha. Fazem meses que não tenho uma boa noite de sono.

          - O que achou de nossas instalações?

          - Sabes que não vou fazer uma avaliação formal, pois não teria aonde arquivá-la. Para o mundo lá fora vocês não existem. Mas estou deslumbrado com o trabalho que vocês têm feito aqui Viatilis. Creio que vamos garantir a sobrevivência dos últimos cinco mundos por mais alguns séculos.

          - Na realidade eu calculei isso, e não tenho boas notícias.

          - Explique-se, Viatilis.

      - Graças aos novos psíquicos, Sinuhe, tenho condições hoje de manter estrita vigilâncias sobre as forças da GOE e verificar sua evolução. Comparando com tudo que estamos construindo aqui e projetando o embate de nossas forças, posso afirmar que mais um mundo irá cair em 50 anos. A Resistência Orgânica vai deixar de existir em dois séculos.

          - Você tem certeza, Viatilis?

        - Tenho. Eles estão à beira de mais um salto tecnológico que vai nos superar. Quando o próximo mundo cair, os demais o seguirão rapidamente.

          - Eu te conheço de longa data, meu caro. Se você não estivesse vislumbrando uma solução, me deixaria ir cego ao encontro do destino.

          - Você tem razão, mas para isso eu preciso de um favor seu. Fique aqui e me ajude a desenvolver uma teoria e depois colocá-la em prática.

          - Eu bem que gostaria. Tenho saudades do tempo que lidava apenas com ciência, mas não posso me aposentar, Viatilis. Está já é a minha sexta vida como comandante e estrategista da resistência. Ninguém mais qualificado do que eu surgiu até agora. Minha intuição desenvolvida e aprimorada por vocês, psíquicos, é única em análise de cenários de guerra.

          - Mas essa mesma intuição também é única na descoberta e analise de novas tecnologias. Tenho certeza de que se você analisasse o que a GOE está tentando criar poderia nos dar uma chance de defesa. Com sua ajuda estas instalações gerariam mais saltos tecnológicos.

          - Eu não posso estar em dois lugares ao mesmo tempo, Viatilis.

          - Neste ponto eu discordo de você. Da mesma forma que ninguém lá fora tem conhecimento da existência de Aldhafera, apenas eu e meus irmãos psíquicos sabemos o que se passa lá fora. Deixe-me reconstituí-lo uma segunda vez, Sinuhe, e você poderá estar aqui e na frente de batalha ao mesmo tempo, sem que ninguém saiba.

          - Você sabe que isso é proibido. Ninguém sabe o que aconteceria com uma alma se existirem dois corpos idênticos ao mesmo tempo.

          - Então. Ninguém sabia porque ninguém o tinha feito ainda. Isso é um tabu e não um fato científico.

          - Sabia...no passado...você o fez, Viatilis?

          - Não estaria propondo isso a você sem saber que estaria arriscando a existência de sua alma. Sim, fizemos. Quando um corpo é duplicado, a alma do original divide-se em duas, da mesma forma que um ser unicelular se reproduz. Não resulta em duas metades, e sim em duas almas completas e idênticas. Ambos os indivíduos passam uns dias sentindo uma certa “fraqueza”, mas depois tudo volta ao normal.

          - Confesso que me deixou assustado, Viatilis. Achava que iria dormir aqui hoje, mas pelo jeito terei muito o que pensar até amanhã cedo. Te darei uma resposta pela manhã, após efetuar a minha adoração à Nob.

          Sinuhe demorou, mas acabou dormindo. O relógio o acordou escrevendo em vermelho no teto do quarto – Nobadorar, 16 de Treddoze de 1963D’GOE. Ele fez sua adoração à Nob, tomou seu café da manhã e deu seu aval aos planos de Viatilis. Após ser transportado a bordo do Cheleb, um segundo Sinuhe foi criado dentro de Aldhafera. Ele sentiu em que momento isso foi feito, pois uma certa sensação de fraqueza o invadiu, conforme foi relato por Viatilis. O Marechal partiu sem olhar para traz. No dia seguinte, foi ao campo de batalha normalmente e nunca mais pisou no estaleiro de Aldhafera.

Agora ele se sentia mais forte do que nunca. Seu segundo eu não existia mais, e ele recebeu de volta a metade de sua alma, que lhe trouxe algumas imagens. Lembranças de uma vida que ele não viveu. Planos e construção de uma nave em forma de botão de flor, que seria protegida e conduzida por poderosos seres psíquicos escondida dentro de uma rajada de quasar, levando em seus imensos bancos de dados as informações necessárias para reviver as populações de cinco mundos em outra galáxia.

- Foi essa a resposta que encontramos juntos, Viatilis? Uma fuga.

Sinuhe ficou triste. Como militar, preferia uma vitória a uma fuga.


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